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Da miséria ao paraíso brasileiro. Historiadora retrata a migração dos boêmios

  • Obrázek autora: Matous Hartman
    Matous Hartman
  • 7. 10.
  • Minut čtení: 9

Viviam até os trinta ou quarenta anos. Não tinham terras e eram assolados pela pobreza. Felizmente, na segunda metade do século XIX surgiu uma oportunidade de escapar da Boêmia. O Brasil buscava novos colonos para substituir o trabalho escravo em fazendas por pequenas propriedades agrícolas inspiradas no modelo europeu — e os vidreiros de língua alemã da região de Jablonec eram candidatos ideais. Na nova pátria, porém, os esperava a decepção: o prometido paraíso terrestre teria de ser construído com as próprias mãos. A historiadora Ivoni Nör, ela mesma descendente de boêmios, dedicou-se a estudar em detalhes a imigração da Boêmia para o sul do Brasil. “Logo ao chegar, precisaram derrubar algumas árvores e erguer um abrigo onde pudessem passar a primeira noite”, explicou na entrevista feita no ano 2024. “Sentiram desespero”, acrescentou.


Por que o Brasil incentivava os europeus a cruzar o oceano e se estabelecer em seu território?

Isso estava ligado à ideologia racial da época — as autoridades queriam “embranquecer” a população brasileira. Temiam uma revolta semelhante à do Haiti, onde os escravizados se insurgiram e proclamaram a independência da colônia francesa. O branqueamento da sociedade brasileira parecia, então, uma solução. E é nesse contexto que entra em cena dona Leopoldina…


Leopoldina foi a primeira imperatriz do Brasil, uma princesa da Casa de Habsburgo (portanto princesa da Boêmia também) que veio ao país para se casar com dom Pedro. Como ela influenciou o processo de colonização?

Ela conhecia bem o sistema de pequenas propriedades rurais existente na Áustria e na Hungria. Os imigrantes deveriam formar uma nova classe social, intermediária entre os grandes fazendeiros e os trabalhadores sem terra — uma classe voltada à produção de alimentos. Foi nesse momento que começou a colonização da região que hoje corresponde ao estado do Rio Grande do Sul. O primeiro grupo chegou em 1824 e recebeu terras. A partir de 1850, porém, os colonos passaram a ter de pagar por elas.


Jih Brazílie v mnohém připomínal střední Evropu, později i architektonicky.

Os colonos tchecos chegaram apenas na década de 1870, quando já era preciso pagar pelas terras. Como funcionava esse pagamento?

Eles tinham um prazo de cinco anos para quitar o terreno.


A terra era cara?

Não, para os padrões da época não era considerada cara. O problema é que os colonos não tinham dinheiro e precisavam produzir para conseguir pagar. Na cidade de Nova Petrópolis, que recebeu muitos imigrantes vindos da Boêmia, atuavam supervisores enviados pelo governo brasileiro, encarregados de cobrar os valores devidos e repassá-los à capital regional, Porto Alegre.


“Quando chegamos e nos disseram que esta terra era nossa, minha mãe se sentou sobre o baú e começou a chorar: Onde está a igreja? Onde está a escola para meus filhos?”

Lembrança de uma das mulheres que chegaram ao sul do Brasil no final do século XIX.


O que acontecia quando alguém não conseguia quitar a terra no prazo?

Os juros aumentavam, mas os colonos faziam tudo o que podiam para evitar essa situação, pois era da terra que tiravam o sustento. Às vezes, vendiam ou trocavam o lote. Houve casos em que chegaram até a devolvê-lo ao encarregado local.


E como eram os terrenos concedidos pelo governo aos colonos? Era uma floresta?

Sim, era uma mata fechada, praticamente impenetrável.


Como conseguiram transformar a floresta em lavoura e quitar a dívida em cinco anos?

Incrível, não é? Os colonos vindos da Boêmia chegavam de barco pelo rio até São Sebastião do Caí, onde um guia os buscava e os levava a cavalo ou em mulas até a praça de Nova Petrópolis.


Essa praça corresponde com a atual?

Acredito que sim. Ali ficava a casa do diretor e um alojamento para os imigrantes. Eles permaneciam alguns dias nesse local, até que alguém os conduzia até o terreno que lhes havia sido destinado.


Eles podiam escolher o lote de terra que queriam?

Os terrenos já vinham demarcados de antemão. Talvez alguém tenha conseguido pedir um lote específico, mas, em geral, tudo já estava definido. A primeira área demarcada foi a atual Linha Imperial (nota: vila que recebeu grande número de imigrantes boêmios, hoje parte de Nova Petrópolis), seguida pela Linha Brasil e por outras localidades.

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Quantos metros quadrados tinha cada lote?

Media-se apenas a parte da frente, voltada para o caminho; em direção à mata, a área era apenas estimada — o que acabava gerando brigas entre os colonos, que não sabiam ao certo onde terminava o terreno de um e começava o do outro.


E o que acontecia depois que o encarregado levava as famílias até suas terras?

Ele simplesmente as deixava lá. As famílias precisavam derrubar algumas árvores e construir um abrigo onde pudessem passar as primeiras noites.


Então elas tinham de erguer o abrigo já no primeiro dia?

Sim. Tinham de começar imediatamente. Minha avó contava que os recém-chegados faziam uma espécie de plataforma e cobriam com folhas, para se proteger, pois às vezes animais selvagens — inclusive cobras — se aproximavam durante a noite. As árvores derrubadas eram empilhadas e depois queimadas. Só mais tarde é que começaram a construir as casas.


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Ouvi dizer que pinhão era o única alimento que os colonos comiam ao chegar. É verdade?

Sim, para muitos foi exatamente assim. Receberam alguns alimentos dos encarregados, mas, em geral, comiam o que encontravam.


Quais o senhor acredita que foram as primeiras sensações dos colonos na nova pátria?

Desespero. Além disso, não havia como voltar — eles não tinham dinheiro para a passagem de volta. Fora as estradas, não havia nada, e algumas delas eram apenas trilhas abertas a facão no meio da mata, conhecidas como picadas. O desespero é comprovado pelos relatos de pessoas que procuravam por uma igreja e uma escola — e não encontravam nem uma, nem outra. Temos o testemunho de uma mulher que lembrava o início da vida na terra que lhes foi designada: “Quando chegamos e nos disseram que esta terra era nossa, minha mãe se sentou sobre o baú e começou a chorar: Onde está a igreja? Onde está a escola para meus filhos?


Eles vieram de um ambiente onde esses serviços já existiam, e aqui não tinham nada do que estavam acostumados...

Exatamente. Vieram movidos pela promessa do governo brasileiro de que teriam animais e sementes — e, no início, o governo realmente cumpriu. Os primeiros colonos receberam uma vaca ou um boi, e também sementes. Os que chegaram mais tarde, porém, já não receberam nada disso. Imagine uma família que viajou até aqui e, ao chegar, foi conduzida a uma floresta densa e ouviu: “Esta agora é a sua terra.” Nas regiões de onde vinham, era costume que as crianças frequentassem a escola. Por isso, os colonos precisaram fundar as suas próprias. Escolhia-se uma pessoa que tivesse algum conhecimento, e a comunidade se unia para pagar por suas aulas.


Os colonos e os indígenas eram inimigos. Os indígenas viam qualquer europeu como uma ameaça.

A floresta era perigosa?

Sim, havia animais selvagens e também a presença da etnia indígena Caingangue, cuja população já habitava a região há cerca de 12 mil anos.


Os Caingangues atacavam os colonos?

Isso ocorria em algumas áreas. Temos registros de que indígenas eliminaram certas famílias, mas não na região onde chegaram os boêmios — isso aconteceu mais abaixo, ao longo do rio Caí. Além disso, os colonos boêmios chegaram mais tarde. Colonos e indígenas eram inimigos; os indígenas viam qualquer europeu como uma ameaça.

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Fotografia histórica dos indígenas da etnia Caingangue (Wikipedia)


Os colonos sabiam que, além dos animais, também havia indígenas na floresta?

Não, acredito que não. Eles chegavam com um grande sonho de conquistar terras férteis. Queriam ser donos de si mesmos, não servos. Mas acabaram ali sozinhos, abandonados pelas autoridades, sentindo falta da terra natal.


Falamos da saudade da pátria, mas em que os colonos encontraram felicidade?

Vieram com a ideia de uma vida melhor e de paz. Acredito que a felicidade estava na possibilidade de tornar esse sonho realidade. Um dos seus valores era o trabalho: primeiro, para pagar a dívida com o governo, e depois, de forma geral.


Quando precisavam derrubar a floresta, alguém os ajudava ou era só a família — homem, mulher e filhos?

Era só a família.


Como isso era possível?

Com trabalho. Primeiro eles derrubavam as árvores, e a madeira era vendida. Depois, queimavam o restante da vegetação. Os encarregados reclamavam que os colonos estavam destruindo a natureza. Assim, os colonos preparavam a terra para o cultivo. Inicialmente, plantavam para consumo próprio e vendiam o que sobrava. Mesmo sem estradas, comerciantes chegavam e, mais tarde, começaram a surgir pequenas lojas. Os colonos compravam café, açúcar, sapatos e tecidos — basicamente tudo que não conseguiam produzir sozinhos — e pagavam com sua própria produção. Depois, tudo era transportado em mulas até o rio Caí, de onde seguia para outros destinos. Uma das atividades que se consolidou foi a criação de porcos. Os rebanhos destinados ao abate eram levados até o rio para transporte em barcos. Também usavam carroças para carregar os animais que se feriam pelo caminho. Conta-se que, à frente, um menino carregava milho em um bastão para que os porcos o seguissem. Surgiu ainda uma fábrica de sebo, que vendia o produto sob a marca Sol, e, por um tempo, até exportava para a Europa.


O gado bovino, tão comum em outras regiões do país, não se adaptou aqui?

Não havia pastagens. A região é montanhosa, e esse foi um dos motivos para enviar colonos: alguém precisava criar os campos. O gado bovino ficava com os proprietários de grandes fazendas em áreas planas.


O pão branco era uma raridade; a farinha era cara e escassa.

Existem exemplos da arquitetura da época? Ainda existem casas do primeiro período da colonização?

Algumas ainda existem. As pessoas construíam suas casas seguindo modelos europeus, por isso encontramos construções em estilo enxaimel. De modo geral, as casas eram assim: a cozinha ficava em um anexo separado da casa principal, para evitar incêndios. No início, o casarão tinha apenas um cômodo; mais tarde, foram sendo acrescentados outros. As camas tinham colchões recheados com palha de milho, e as pessoas se cobriam com edredons de penas — algo que hoje já não é comum no Brasil.


Os tchecos veem o Brasil como um país tropical, mas no sul isso não se aplica — no inverno as temperaturas chegam perto de zero. Como os colonos se protegiam do frio?

Trouxeram algumas roupas da Europa, mas era difícil. Usavam várias camadas de roupa e tamancos de madeira.


A vida era realmente muito dura. Há relatos de que alguns colonos decidiram tirar a própria vida?

Sim, alguns chegaram a fazer isso.


Ivoni Nör com o seu livro no dia da entrevista em maio de 2024
Ivoni Nör com o seu livro no dia da entrevista em maio de 2024

Qual era o papel das mulheres?

As mulheres tinham um “turno triplo”. Cuidavam das crianças e da casa, da horta de legumes e flores, e também das galinhas, pois com os ovos podiam comprar coisas que os colonos não produziam. Além disso, costuravam roupas para toda a família. As famílias geralmente usavam tecidos iguais para todas as roupas, algo curioso de se ver em fotos antigas; os tecidos eram, na maioria das vezes, xadrez. Os homens começaram a usar os ponchos, que também podiam ser comprados de comerciantes, mas isso era um privilégio do chefe da família. A vida era realmente dura. Muitas mulheres ficaram viúvas. Quando isso acontecia, elas herdavam a terra e precisavam cuidar dela junto com o filho mais velho. Às vezes, a comunidade providenciava um novo marido. As mulheres também assavam pão. Mas não era pão branco — esse era um verdadeiro sonho para os colonos. Temos relatos de uma família que descreve a alegria de comer pão branco novamente, anos depois.


Então, no início, eles não tinham pão?

Não. A farinha era cara e escassa.


Os colonos enfrentaram doenças? Estavam em um ambiente diferente e não havia antibióticos. Quão grave era o problema?

Os colonos não tinham médicos e resolviam tudo em casa com plantas medicinais. Começaram também a usar ervas e técnicas locais, contando com a ajuda de curandeiras. Muitas coisas eram feitas de forma incorreta — por exemplo, para ferimentos, aplicavam o que sobrou do café, entre outros métodos. Transportar os doentes até um médico era muito difícil, por isso as curandeiras desempenhavam um papel essencial. Os primeiros médicos chegaram somente ao armazém dos Wazlawik.


De que forma as colônias se conectavam com o mundo exterior?

Através de mensageiros que chegavam vendendo produtos não disponíveis na colônia. Eles funcionavam como um “rádio”, trazendo notícias e cartas. Na Dinamarca, encontrei uma carta enviada por meus antepassados a um parente com o mesmo sobrenome.


Por que a colonização se concentrou no sul do Brasil?

Porque havia espaço — ainda existia muita floresta que podia ser desmatada. Era, portanto, um território ideal para um novo modelo econômico, diferente da monocultura, do trabalho escravo e das grandes fazendas, que predominavam em outras regiões do país. Ali, o objetivo era criar propriedades familiares sem trabalho escravo, voltadas à produção de alimentos para o mercado interno — e isso realmente aconteceu. Tentativas semelhantes foram feitas em outros lugares, mas não tiveram sucesso; aqui, funcionou.


Os colonos europeus chegaram ainda na época da escravidão. Isso foi um choque para eles?

Não sei ao certo, mas os imigrantes tinham proibido possuir escravos.


Por quê?

Porque o objetivo era “embranquecer” a sociedade, considerando a experiência de miscigenação entre colonizadores portugueses e a população indígena. O projeto também visava promover trabalho livre e diversidade na produção, evitando a formação de plantações monoculturais como em outras regiões do Brasil. Ainda assim, os encarregados diziam aos colonos o que plantar — fosse batata ou tabaco.


Como os colonos, que falavam diferentes línguas, se tornaram brasileiros?

A política era responsabilidade apenas das elites; o restante deveria trabalhar e não se preocupar com o que acontecia acima. Os colonos não se interessavam por política, pois em suas regiões de origem a vida política rural praticamente não existia. Só mais tarde eles se envolveram na política brasileira, e a integração ocorreu principalmente na década de 1930, durante o governo do presidente Getúlio Vargas, que proibiu o uso do alemão, japonês e italiano. Os colonos tiveram de aprender português.


Qual foi a motivação para isso?

Tratava-se de um movimento de nacionalização, semelhante ao europeu. Getúlio Vargas queria formar a nação brasileira. Muitos o odiaram por isso, outros o reverenciam. E, se você quer construir uma nação, não consegue fazê-la a partir de pessoas que falam línguas estrangeiras.


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Conheci Ivoni Nör (na fotografia, à direita extremo) quando ela era estudante de tcheco nas aulas em Nova Petrópolis. Em maio de 2024, nos encontramos para que ela me contasse sobre a história da cidade e da imigração boêmia. Passamos uma tarde muito agradável, durante a qual aprendi muitas coisas interessantes. Parte desse conteúdo está registrada na transcrição da entrevista.

 
 
 

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